Ser mulher em 2021

18-05-2021

Ser mulher não é fácil. Ser mulher não é apenas nascer com dois cromossomas X. Aliás não se nasce mulher, torna-se mulher. Este caminho de formulação da nossa própria identidade é, muitas vezes, duro e desafiante, quer por obstáculos pessoais, quer pelos que a sociedade nos impõe. Crescemos a ouvir que não nos podemos exaltar, mas à medida que vamos amadurecendo, o nosso grito interior pela mudança torna-se cada vez mais ensurdecedor. Crescemos a ouvir que há regras e protocolos que uma mulher tem de seguir, mas à medida que vamos amadurecendo percebemos que o que realmente queremos perseguir são os nossos sonhos e objetivos. Ser mulher em 2021 não é fácil.


Mas será que o mundo é mais justo para as mulheres hoje do que era há 100 anos? Claro que sim. Foi um século de infinitas conquistas e sonhos concretizados no mundo ocidental e de alguns progressos nos países menos desenvolvidos, apesar do seu ritmo extremamente lento. Porém, é importante viver consciente de que tudo aquilo que alcançamos pode ser destorando. Citando a filosofa Simone De Beauvoir "Basta uma crise económica, política ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Temos de manter-nos vigilantes durante toda a nossa vida". Gostaria de conseguir contrariar esta afirmação, mas esta pandemia infelizmente comprovou, mais uma vez, que Simone continua a ter razão. Estamos há mais de um ano a falar sobre a Covid-19 e sobre o seu impacto na saúde (física e mental), na educação e na economia, mas são raras as pessoas que já pararam para refletir sobre as desigualdades que esta veio aumentar. Em qualquer crise, é aumentado o fosso entre os mais poderosos e privilegiados e os menos protegidos. Assim, é fácil concluir que a desigualdade de géneros foi acentuada com a chegada e instalação desta duradora pandemia. Esta está a ser indubitavelmente muito dura para todos os cidadãos, sejam eles de que género forem, mas é importante refletirmos sobre os aspetos em que as mulheres foram (e estão a ser) mais penalizadas do que os homens.


Num ano em que o desemprego aumentou massivamente, as mulheres foram as mais afetadas. As razões são múltiplas e refletem o quanto temos ainda de lutar para alcançarmos um mundo mais justo e igual para todos. Efetivamente, na hora de escolher quem é que deve voltar a trabalhar e quem é que deve continuar a ficar em casa a tomar conta da família, a decisão é bastante rápida. Novamente, as razões são fáceis de perceber e espelham a sociedade misógina em que ainda vivemos. Em primeiro lugar, em Portugal, em média, os homens ganham 14,4% mais do que as mulheres (segundo os dados mais recentes do Eurostat) e, portanto, quando se tem de abdicar de um dos salários, opta-se pelo mais baixo, que na maioria das famílias é destinado às mulheres. Em segundo lugar, na nossa sociedade, a mulher ainda é vista como um "ser cuidador" dotado de uma enorme sensibilidade para tomar conta de crianças e idosos e, por isso, é esta que "deve" ficar em casa a cuidar da família. 


 Além disso, o desemprego recai mais nas mulheres do que nos homens, pois a maior percentagem de trabalho precário é preenchida pelo sexo feminino. Num emprego precário, os trabalhadores são muito pouco protegidos, sendo, por isso, mais fácil despedir ou não remunerar sem motivo aparente. Além de tudo isto, é de extrema importância referir que o trabalho não remunerado aumentou exponencialmente para as mulheres, pois a maior parte do trabalho doméstico ainda é destinado à mulher, não havendo qualquer divisão de tarefas. Para ser mais precisa, faltam cerca de 180 anos para que esta divisão seja igual para homens e mulheres, segundo um estudo da fundação Francisco Manuel dos Santos. Por fim, o pior e mais assustador dos factos da pandemia: as sobreviventes de violência doméstica passaram a conviver com o seu agressor os sete dias da semana, durante vinte e quatro horas por dia. Percebemos, então, que a quantidade de agressões disparou no último ano, apesar da sua brutal maioria não ter sido reportada às autoridades, acabando por não terem sido incluídas nas estatísticas oficiais. Mas porque é que as mulheres são as mais prejudicadas neste último fator? Porque, segundo os dados disponibilizados pela APAV no início de 2021, cerca de 74,9% das vítimas são mulheres e apenas 17,5% são do sexo masculino (as restantes ou são intersexo ou não foi possível identificar). Em contradição, 65% dos agressores foram homens, enquanto que apenas 12% foram mulheres.


Mesmo que não estivéssemos a viver uma terrível crise sanitária, económica e social, as mulheres teriam de enfrentar mais dificuldades e obstáculos que os homens. Quando questionadas sobre aquilo que gostariam de fazer se pudessem ser do sexo masculino durante 24 horas, as mulheres apresentam simples respostas, como dar um passeio à noite sozinha. Quando o exercício é feito ao contrário, as respostas dos homens são muito mais sexistas e diferentes, como, por exemplo, experimentar usar um soutien ou um penso higiénico. Este pequeno exercício espelha na perfeição o quão desigual a nossa sociedade continua a ser. Em pleno século XXI, num país de desenvolvido, a grande maioria das mulheres continua a sonhar com passeios, sem que nada lhe mal que aconteça, e tudo se deve à brutal violência sexual que se ainda se vive no nosso país.


Porém, estaria a ser injusta se só me queixasse do quão pouco justo é o mundo para nós mulheres, quando temos também benefícios e regalias que não nos podem retirar, por mais crises, revoluções e guerras que haja. Podia apresentar uma lista de privilégios, mas acho que há um que sobressaí. Vivemos num corpo capaz de produzir e construir vida e não há nada no mundo mais mágico e único, se assim o entendermos, pois somos (ou deveríamos ser) donas do nosso próprio corpo e vida.


Ser mulher não é nada fácil. Vivemos num mundo que perpetua ideias e preconceitos que não fazem sentido. Vivemos num mundo que nos impõe moldes para nos encaixarmos na sociedade. Mas, não vivemos num mundo que nos oferece proteção, igualdade e justiça social. Porém, desde os primórdios da História, existem pessoas dotadas de uma resiliência sem fim e de uma enorme vontade de mudança, que de tudo fazem para que nós mulheres vivamos num mundo melhor.


Ah e lembrem-se, não é fácil ser mulher, mas é muito bom.


Francisca Fontes


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